eSPEREANDO hELENA
pOR eLIZA
Os dias são rigorosamente iguais, indiscutivelmente previsíveis. Como todos os dias eu saio de casa às oito e só chego à noite.
Hoje, por nenhuma razão especial, talvez para tentar ludibriar o idiota que rege o meu inalterado cotidiano, eu vou almoçar em casa e não vou voltar para o trabalho,
talvez eu vá à praia ou ao cinema, ou fique na banheira o resto da tarde, brincando com a espuma, lendo o livro que acabo de comprar. As pessoas que falam comigo são apenas figuração, na verdade, eu não tenho vontade de saber sobre o que falam, e o ruído que elas emanam me entedia de uma forma que eu nunca pensei ser possível.
Para tentar fingir que estou fazendo alguma coisa, pego o telefone e ligo para minha casa, sei que não tem ninguém, eu moro sozinha, mas sou a única que sabe disso no escritório, pois não tenho amigos lá. Apesar de saber da inexistência de outros no apartamento, sinto uma estranha inquietação, como se eu esperasse que alguém atendesse.
- Alô? - Por favor, eu gostaria de falar com Helena.
- Sim, é ela.
Como pode ser? Tem alguém na minha casa que também se chama Helena. Só pode ter sido um engano, vou ligar de novo.
- Alô? - É, por favor a Helena?
- Sim, é ela.
Desliguei apavorada, tremendo, resolvo sair do escritório, saio pelo rua, desnorteada e entro no primeiro bar que encontro. Como isso é possível? Se tem alguém na minha casa vivendo a minha vida enquanto eu trabalho, então quem sou eu? Provavelmente ela deve ter ido à praia e está lendo o meu livro na banheira. Onde eu vou morar?
Resolvo ligar mais uma vez, o telefone chama, chama e ninguém atende, a garçonete do bar, vendo o meu estado, resolve dizer algumas palavras de consolo, e diz que meu amor vai chegar em breve, e que os homens não prestam quando não querem atender os nossos telefonemas.
_ Antes o meu problema fosse amoroso...
_ Para quem você está ligando? Não é homem?
_ É para mim mesma.
_ Não entendi.
_ Eu liguei para mim mesma, e atendi o meu telefonema, entendeu?
_ Como?
_ É o que eu gostaria de saber... Pelo jeito ela ainda não sabe que eu existo. Eu não sou real para ela, mas ela é para mim.
_ E isso quer dizer alguma coisa?
_ Você deve estar me achando uma louca...
_ Sim, eu acho, mas meu expediente está acabando e eu não quero ir para casa. Eu posso ir até a sua com você e mostrar que isso foi um mal entendido ou que tudo não passa de uma brincadeira de mal gosto.
Saímos apressadas por entre carros, pessoas, ambulantes, esbarrando em tudo e em todos. Eu devo estar realmente perturbada: primeiro ligo para casa e mesmo tendo a consciência de que moro sozinha espero atenderem e quando atendem, peço para falar comigo, e agora, saio com uma garçonete carente que não sei nem ao menos o primeiro nome, em direção a meu apartamento.
_ Chegamos, é aqui.
_ É um prédio bonito. Vamos subir.
A rua estava repleta de pétalas no chão, eu nunca tinha chegado em casa ainda com o sol no céu, e nunca podia ver a rua iluminada pela luz natural do dia. De manhã aquelas flores, mesmo mortas no chão pareciam estar vivas, reverberando a luminosidade cuidadosamente na medida certa. Olhei para o lado e vi a garçonete me olhando como se tivesse me esperando sair de dentro mim. Naquele momento eu tive certeza de que eu não era mais a mesma pessoa, e portanto, a vida daquela Helena que atendeu o telefone, não era a minha. Já não tenho certeza de que vida é a minha.
_ Vamos, você vai ver que não tem ninguém.
Subimos. O porteiro não disse nada, não perguntou quem eu era, parece ter me reconhecido, ou talvez nunca pergunte a ninguém. Ao sair do elevador um súbito medo se apossou de mim, e temi encontrar alguém exatamente como eu, na minha casa, vivendo a minha vida de forma muito melhor.
A chave encaixou e abri a porta. A sala estava exatamente com eu havia deixado: os livros no canto direito, os jornais espalhados pela mesa do café, as fitas de vídeo empacotadas bem no centro, as compras ainda no balcão, discos, fitas e cds amontoados em cima do sofá antiquíssimo da minha avó e o computador no chão.
_ Nossa, que bagunça. Acho que alguém esteve aqui mesmo.
_ Não, está tudo em perfeita ordem. É que acabei de me mudar. Quer café?
_ Acho que vou aceitar. Está mais tranqüila? É claro que só pode ter sido alguém fazendo uma brincadeira.
_ É, provavelmente sim, mas o que me assustou foi eu ter tido a sensação de que realmente era eu do outro lado. A voz era minha, até o jeito de falar, e para ser sincera, eu me senti da mesma forma ao falar com ela como das vezes que eu falo comigo mesma.
_ Mas isso é impossível, você sabe.
Levei a garçonete até a porta, fechei e pensei no dia tumultuado que tinha tido, afinal, não foi tão previsível assim. Exausta, vou tomar banho, me direcionando para o único lugar da casa que eu realmente adoro. O banheiro tem uma janela imensa, com uma banheira da década de cinqüenta, de onde posso ver uma parte da rua e a árvore que fica em frente ao prédio. Tiro a roupa no quarto, vou até a sala pegar o livro que estava lendo e ando pelo apartamento até chegar ao banheiro. Assim que abro a porta, percebo que o chão está molhado, a água fria me faz olhar para baixo e ver as gotas espalhadas. Olho para frente e a banheira está transbordando, ao lado dela o meu banquinho suporta o peso do sabonete e em baixo dele um papel escrito à mão com uma letra que parecia ser a minha. A caneta rolava para a direita e para esquerda, em cima da pia, conforme o vento.
Paralisada em frente à cena, não senti medo. Agora sozinha, estava até mais segura para me enfrentar. Peguei o papel, mas ele estava um pouco borrado por causa da água. Eu já estava acostumada àquela cena, era minha essa mania de escrever no banho. No papel apenas reflexões soltas, poemas bobos como os meus.
Vesti a primeira roupa que encontrei e desci, resolvi esperar por mim na porta do prédio. Não consegui ficar parada, andava de um lado ao outro da rua, sem entender porque faziam isso comigo, ou se era eu mesma que estava fazendo aquilo. Não sei mais o que é real e o que não é.
O que é real?
É a minha vida ou a dela?
Porque para mim a minha vida é real, e para ela o contrário.
Como podem duas pessoas viverem a mesma vida?
E as duas acharem que estão bem? Esperei até de manhã e nada, nem sinal da outra. Subi, liguei para o bar onde tinha conhecido a garçonete, não sabia nem o nome, mas me senti segura para contar o acontecido.
_ Alô?
_ Oi, Helena, como vai?
_Bem, obrigada, escuta...
_ Ah, antes de você falar qualquer coisa eu gostaria de agradecer pelas flores. Foi muito doce da sua parte, mas eu teria feito aquilo por qualquer pessoa, você estava desesperada e eu fiquei com pena...
_ Como flores? Que flores?